A tragédia individual de interromper a própria
trajetória no mundo. O rastro devastador de sentimento de culpa e dúvida
deixado em “quem fica” pelo corte violento da saída de cena abrupta de uma
pessoa querida, seus planos, sonhos e capacidade de trocar afeto. Esses dois
motivos principais, entre vários outros, gerados por dezenas de fatores,
transformaram o suicídio em um problema crescente de saúde pública, capaz de
atrair atenção obrigatória das partes responsáveis das sociedades no mundo.
Aqui no Brasil o fenômeno começa, aos poucos, a ocorrer. Nem mesmo os
pesquisadores e especialistas mais refinados conseguem mapear e antecipar em
todos os casos, na ampla diversidade de fatores existentes, a combinação
daqueles que levam a pessoa a colocar ponto final na existência. A culpa de
familiares e pessoas próximas por não ter percebido o caminho a ser feito pelo
suicida ainda no ensaio não deve, portanto, existir. Mas quando o país
estremece diante do suicídio de três jovens de classe média alta em menos de 21
dias, ocorridos e anunciados em abril por dois colégios particulares de elite
em São Paulo, dois no Bandeirantes, do bairro da Vila Mariana, e um no
Agostiniano São José, de Belém, a oportunidade para uma reflexão que ligue o
tema ao universo da educação está colocada. Para além de existirem, ou não,
motivações ligadas às escolas nestes casos, o que, afinal, gestores e
educadores podem fazer em seus ambientes de trabalho para ajudar a identificar
jovens e adolescentes deprimidos, com distúrbios psiquiátricos ou abalados por
algum impacto negativo profundo, e encaminhá-los ao tratamento antes que eles
resolvam solitária e tragicamente a questão.
Karina Okajima Fukumitsu, pós-doutora pelo
Instituto de Psicologia da USP e uma das coordenadoras do Programa de Prevenção
e Posvenção do Suicídio, foi chamada pela direção do Bandeirantes em 11 de
abril, dia seguinte ao primeiro episódio, de um adolescente de 16 anos,
estudante do segundo ano médio. A psicoterapeuta não deu qualquer detalhe sobre
a identificação ou a ação dos jovens, nos dois episódios, em entrevista a
Educação, mas outras fontes revelam que o primeiro caso pode ter sido mais
estudado e planejado pelo rapaz, envolvido há algum tempo num tratamento para
depressão. Tirou a própria vida um dia antes do início de avaliações do
bimestre, sem deixar explicação. “Amado, doce, sensível, inteligente. Aplicado,
exigente, articulado. Carinhoso, protetor, amigo. Fiel, engajado, questionador
e com olhar para as questões do mundo. Não tenho palavras para explicar”,
escreveu seu pai no Facebook.
A psicoterapeuta começou a trabalhar no mesmo
dia 11 de abril, numa reunião com educadores e gestores para planejar o
trabalho de acolhimento dos alunos. Dois dias depois, reuniu a direção e a
coordenação em seu consultório para novas orientações. No dia 20, uma
sexta-feira, deu palestra para professores e funcionários da escola. Na noite
de 21 para 22, abalado por um choque inesperado (teria visto a moça por quem
era apaixonado com outro jovem), o segundo adolescente, de 17 anos, aluno do
terceiro ano médio, voltou para casa e cometeu suicídio, igualmente sem deixar
explicações.
“Neste momento em que questionam a direção do
Bandeirantes, é preciso lembrar: a direção foi transparente no anúncio dos
casos, que, diga-se, não ocorreram em seus limites. E também responsável desde
o primeiro episódio”, enumera Karina. “Além disso, eram dois meninos
inteligentes, afetuosos, de famílias esclarecidas. Não sofriam bullying e
tampouco se conheciam, o que, a meu ver, invalida a tese de contágio. O
colégio, em seus 74 anos de existência, tinha registrado dois casos de
suicídio, um há 30 anos e outro 15 anos atrás. Não parece razoável considerar
esse dado uma distorção em uma instituição que trabalha com quase 3 mil alunos
a cada ano.”
Mas e o fato conhecido de que o Bandeirantes e
o Agostiniano possuem em comum um projeto pedagógico extremamente exigente,
voltado à conquista do maior número de vagas e primeiras colocações nos
principais centros acadêmicos do país, que provoca a desistência de boa parte
dos alunos no meio do caminho? Poderia haver relação entre essa realidade e os
episódios recentes?
A psicoterapeuta discorda. “As circunstâncias
mostram que não. O Bandeirantes jamais escondeu seus objetivos. Alunos e pais
têm orgulho deles, a exemplo dos dois adolescentes. Eles eram preparados,
tiravam boas notas, estavam plenamente adaptados ao projeto. Mesmo assim, a
direção pareceu-me comprometida com a avaliação constante de suas práticas e a
busca de eventuais adequações. Mas abrir mão de um projeto pedagógico
consagrado não me parece a melhor alternativa”, analisa. A gestão Agostiniano e
a família do aluno da escola não comentaram o episódio.
Os números
Pelo menos 800 mil pessoas tiram a vida por ano
no mundo, atesta a Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma a cada 39 segundos,
ou 1,4% das mortes totais. Na média global, 10,7 a cada grupo de cem mil
habitantes, sendo 15 por cem mil homens e 8 por cem mil mulheres. As chances de
a estimativa ser modesta são grandes: técnicos da própria OMS acreditam que
apenas 60 dos 172 países integrantes enviem dados efetivamente confiáveis. O
problema é que 78% dos suicídios registrados, praticamente oito a cada dez,
ocorrem justamente nos países suspeitos de remeter informação imprecisa.
A Europa (14,1) lidera o ranking, seguida do
Sudeste Asiático (12,9). Os países africanos (8,8) e das Américas (9,5)
despertam na OMS as maiores desconfianças quanto à subnotificação. E, apesar da
evolução nos últimos dez anos, o Brasil também precisa melhorar sua apuração de
dados. A taxa atual, 5,1 por grupo de cem mil, nem está entre as maiores (a de
homens nessa faixa é 9 por cem mil e a das mulheres, 2,4). Mas quando projetada
sobre a população brasileira, de mais de 207 milhões de habitantes, produz
números preocupantes como, por exemplo, os 10.575 suicídios registrados – 29
por dia; um a cada 49 minutos e meio – em 2016, último ano com taxa
oficialmente apurada pelo Ministério da Saúde.
A marca anual brasileira subiu ano a ano na
década de 2000. Chegou ao pico histórico de 11.736 em 2015 e caiu no ano
seguinte. Mesmo com o recuo, o suicídio tornou-se a quarta maior causa de morte
da população geral brasileira e a terceira entre homens dos 15 aos 29 anos. Na
faixa dos 15 aos 19 anos, que abriga os adolescentes dos episódios de abril, a
relação pulou de 2,9 para 4,2 entre 2011 e 2015, um aumento de preocupantes
45%. Entre dez e 14 anos, o salto foi ainda maior: de 0,5 para 0,8 por grupo de
cem mil pessoas, ou 65% a mais. Entre os adultos (20 a 29 anos), o índice
também aumentou. Foi de 5,2 para 6,5, um incremento de 23%. A escalada entre
idosos com mais de 70 anos também preocupa, com 8,9 mortes por cem mil. E a dos
índios provoca espanto: 15,2 a cada cem mil, a maior de todas as faixas.
Mulheres atentam mais contra a própria vida,
mas escolhem métodos de menor poder letal. Por isso, homens formam maioria de
casos em todo o mundo – no Brasil, correspondem a 79% do total. Seis em cada
dez episódios de suicídio envolvem solteiros, viúvos, divorciados e solitários.
Brancos brasileiros (5,9 por cem mil) interrompem a própria trajetória em
escala maior que a dos negros (4,7). A notificação de tentativas e óbitos é
obrigatória no país em até 24h desde 2011.
O cruzamento de tudo isso revela um cenário
incômodo: apesar dos índices não alarmantes se comparados aos mundiais, o
volume de suicídio vem crescendo por aqui na média, nos últimos anos, com a
preocupante contribuição de adolescentes, jovens e novos adultos. A meta do
Ministério da Saúde é reduzir o número total e os índices de todas as faixas em
pelo menos dez por cento até 2020. E aproveitar a arrancada, se ela vier, para
continuar depois em trajetória de queda.
Desinformação e
preconceito
Será possível? Neury Botega, pós-doutor em
psiquiatria pela Universidade de Londres, professor titular da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), escritor e um dos mais sensíveis estudiosos
brasileiros do tema, acredita que sim. “Os estudos e pesquisas mostram que é
raríssimo, praticamente impossível, encontrar alguém em busca de suicídio ou
sobrevivente de tentativa que não esteja atormentado por algum transtorno
psiquiátrico, depressão à frente, ou um forte e repentino abalo emocional”,
constata. “Abalado por esses problemas, o suicida sofre com uma dor
intolerável, destruidora de estrutura. No fundo, não quer se matar, mas deixar
de sofrer. Mas sua consciência se estreita a tal ponto que o impede de
acreditar que a chave para se livrar do sofrimento crônico é se tratar, não se
matar. Só a abordagem profissional reverte essa situação”, esclarece.
Para isso, reforça Botega, é necessário que as
pessoas abandonem conceitos equivocados. “Passem a acreditar: quem diz que
deseja se matar realmente poderá fazê-lo. Essa história de que quem anuncia
nunca faz não passa de crendice popular sem fundamento. Quem ameaça poderá ou
não se matar – exatamente a exemplo de quem jamais fez qualquer ameaça.”
O psiquiatra dá dicas para quem se descobrir
diante de alguém com ideias suicidas. “Na escola, entre amigos ou na família,
faça todo o esforço possível para ouvir a pessoa sem questionar as fraquezas
dela segundo seus valores religiosos, morais ou sociais. Evite qualquer risco
de ser visto como alguém preconceituoso. O momento não é para sermões ou
proposições éticas”, ensina. “Tente mostrar, com equilíbrio, sem frases feitas
ou julgamentos exagerados de valor, que o suicídio não será a melhor saída. E o
fundamental: assuma, a partir daquele momento, o compromisso de não abandonar a
missão antes de convencer a pessoa a procurar ajuda profissional. Acompanhe
agendamentos, converse com familiares se não houver restrições e vá, em
companhia, na primeira consulta. São obrigações que o destino e a vida daquela
pessoa entregaram a você a partir do início daquela conversa.”
Além dos ensinamentos de Botega, outra atitude
importante é abandonar a ideia equivocada de que os sinais dados por quem
deseja interromper a vida são sempre perceptíveis e, por isso, quem não os nota
antes da atitude deve ser acusado por irresponsabilidade. “Em maior ou menor
grau, os sinais sempre existirão. É importante que as pessoas ao menos tentem
aprender a identificá-los. Mas daí a imaginar que todos os transtornos graves
presentes na vida das pessoas, sobretudo adolescentes e jovens, serão
refletidos em manifestações facilmente perceptíveis por qualquer um é uma
combinação de preconceito e desinformação”, resume Alexandrina Meleiro, professora
do Instituto de Psiquiatria da USP, integrante da Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP), diretora científica da Associação Brasileira de Estudos e
Prevenção do Suicídio (ABEPS).
fonte: http://www.revistaeducacao.com.br/suicidio-prevencao-requer-informacao-e-vigilancia-por-parte-de-familias-e-escolas/
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